Artigo: Dois Rios em um Mar

 

 Dois rios (2011) é o segundo romance de Tatiana Salem Levy que estreou na literatura com A chave de casa (2008), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura e finalista dos prêmios Jabuti e Zaffari & Bourbon de Literatura. Este foi traduzido para diversos países como Itália, França, Portugal, Espanha e Turquia, além disso, teve seus direitos vendidos para a produção de um filme.

                Após este sucesso no primeiro romance, Tatiana surge com uma obra que prende o leitor com uma escrita fina e pela construção da narrativa fragmentada, com flashes de memória, trazendo à tona o passado dos irmãos gêmeos, Joana e Antônio. O livro é dividido em duas partes: a primeira apresenta Joana como narradora e a segunda é narrada por Antônio. As epígrafes que abrem os dois capítulos sugerem uma narrativa voltada para a metáfora do mar. Aliás, é no mar que se passa grande parte da história em Copacabana onde vivia a família, em Dois Rios (Ilha Grande) onde passavam suas férias na casa dos avós e em Nonza, um pequeno vilarejo no Sul da França, em que viviam os familiares de Marie-Ange.

                Os dois narradores possibilitam ao leitor experimentar as angústias e os desejos dos protagonistas.  O texto inicia com a narração de Joana que, após a partida do irmão fotógrafo para uma volta ao mundo, fica em casa cuidando da mãe, que aos poucos enlouquece e assimila manias que transformam a casa num espaço claustrofóbico, contaminado de uma ordem oposta à desordem em que se encontram suas vidas, mãe e filha, após a morte do marido e, mais tarde, a partida do filho. Neste romance, a casa é uma jaula, segundo Elódia Xavier, uma prisão em que a protagonista sobrevive mergulhada em um passado até ser resgatada pela jovem francesa Marie-Ange que aparece misteriosamente na praia de Copacabana, causando em Joana um sentimento de liberdade, antes apenas experimentado na infância com a presença do irmão gêmeo. Joana se apaixona por ela no instante em que a vê e o relacionamento entre elas instaura uma ruptura, uma divisão de águas no discurso narrado. Antônio é acusado por Joana por abandoná-la no momento em que ela mais precisava. O discurso dela é melancólico e ganha novos tons com a chegada da francesa ou quando remete à infância na presença do irmão em Dois Rios.

No segundo momento da narrativa, é Antônio quem narra suas sensações da infância até a cisão com a morte do pai. A cumplicidade dos irmãos, a chegada da puberdade e o intenso relacionamento pueril, com a irmã, que, aos poucos, dá lugar à descoberta dos prazeres carnais, trazendo um erotismo que Bataille descreve na fronteira entre o sagrado e o profano e permitem ao leitor perceber a complexidade das relações humanas. Além das impressões da infância, Antônio descreve seu próprio abandono. Após um intenso e breve relacionamento com Marie-Ange, é ele quem é abandonado no vilarejo na França e permanece lá à espera de sua amada enquanto passa sua vida em revista num diálogo interior dilacerado e direcionado a ela.

                Marie-Ange é o mar em que desaguam os dois rios: Joana e Antônio. Na voz, antes sufocada, pela narração de Joana, o leitor, assim, sabe que o irmão também se apaixona pela mesma mulher que a irmã. Em momentos diferentes da narrativa, quem sai ganhando neste jogo narrativo, de espaços e tempos, de perdas e ganhos dos protagonistas é o leitor que é presenteado pela autora por esta dupla narração. Ficar ou partir, diante de um mar revolto!? Existiriam vítimas ou algozes? É exatamente a relatividade na percepção dos acontecimentos que é posta no jogo narrativo da autora.

                Por fim, é certo que Tatiana Salem Levy veio para ficar. Sua escrita é madura, seus jogos estruturais e seu estilo apresentam uma estética e um refinamento atribuído a grandes prosadores canônicos como Machado de Assis. A presença do Outro, num jogo de alteridade em que é possível se perceber na relação interpessoal, surge narrativa. Dois Rios é um romance contemporâneo que figura entre os melhores livros da atualidade e merece ser lido sem contraindicações. Ele fala, sobretudo, da condição humana.

 

LEVY, Tatiana Salem. Dois rios. Rio de Janeiro: Record, 2011.

 

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Cintia Barreto